O beneficiário
O beneficiário
Conseguiu aposentar-se depois de tanto sofrer, mas se deixou enganar quando dele se aproximou uma jovem desconhecida, pedindo ajuda. Dizia ela que só queria ajudá-lo, limpar sua casa, fazer a comida, tratar daquele homem como filha, e em retribuição ele poderia auxiliá-la nos estudos. Assim, abriu as portas da casa desarrumada e também do coração. Para um homem só, acostumado a comer bolacha e a beber café por quase todos os dias, salvo algumas refeições que lhe eram dadas pelos vizinhos, ficava na rede com o rádio ligado ouvindo as notícias da terra natal, precisava agora de alguém que o ajudasse na velhice.
Procurou melhorar a saúde, a fazer planos, a vestir-se melhor, a engraxar os sapatos, a pintar os cabelos, a aparar as unhas, a se encher de vaidade e de perfumes, e aos poucos foi esquecendo das promessas que fizera, da família que deixara, dos filhos agora crescidos e maiores e passou a cultivar seu jardim. Dizia-se feliz. Pintou a casa, comprou mobília nova, panelas agora cheias sobre o fogão, tudo cheirando a novo, da televisão em cores ao som que nunca antes escutara, letras cheias de críticas e lamentações contra o sistema que o inimigo insiste em dizer para a juventude que é coisa boa, porque embala e faz embriagar, a vender o corpo por uns trocados, a matar ou morrer nas madrugadas afora onde se diz que ninguém é de ninguém e que a vida se conta pelas curtições afora. A jovem simulou estudar e Antonio procurou presenteá-la. Ele recorria a Artur, seu melhor amigo, que o auxiliava nos dias de pagamento.
Aquela cidade havia crescido, sua gente também, e já não era como no passado onde se dormia com janelas e portas abertas, pertences na área, roupas no varal, carro em frente de casa, nada, tudo agora se mantinha trancafiado, até as pessoas, como animais enjaulados, e muitas crianças que conheceu nos braços das mães, amamentadas, adoentadas nos hospitais, agora perambulavam pelas ruas, pedindo e tomando, batendo, matando, ausentes da escola e do ambiente de Deus. No lugar de um banco simples havia uma agência moderna cheia de códigos e números cujas máquinas o ancião não sabia operar. Sabia cortar a seringueira com golpe de mestre, e mesmo assim não a sugava, não a matava, extraia apenas o necessário para sobreviver; sabia plantar e colher, prover a despensa com a pouca manutenção adquirida na cidade, mas ali precisava de ajuda para retirar o que lhe pertencia, e além do mais Antonio não conseguia entender aqueles números e letras, era analfabeto e andava com as senhas na carteira que sempre guardava na mesa da sala. Muitas vezes viu amigos seus pedirem auxílio a pessoas desconhecidas, noutras sabia dos roubos e mortes praticados contra os velhinhos indefesos, das falsas amizades, dos falsos parentes, dos falsos procuradores, dos que sempre se aproximam quando o assunto é dinheiro, e recordava-se mais uma vez do suor, das amarguras na travessia rumo à Amazônia. Eram números demais na sua cabeça, isso era modernidade, e confiava no amigo que fazia sempre com atenção e paciência.
Antonio recebia a pensão e todos queriam saber para onde ele a destinava, mas calavam quando carros do comércio vinham cheios à sua porta com mercadorias para o mês, com mobília, compras em geral. Ele também pagava o financiamento da casa, tinha comprado roupas para a jovem, perfumes, celular e tudo era pago a longo-prazo, talvez menor do que o restante dos dias que dispunha. Ganhou cartão de crédito, cheque especial, e fez mais empréstimos, fez dívidas de norte a sul, não se continha e era facilmente assediado pelas financiadoras que lhe prometiam a realização de sonhos com financiamentos a juros baixos, os melhores do mercado. Tudo para ele era bom e mais uma vez o velhinho fazia o pedido e em poucos dias o dinheiro estava na conta, e depois queria explicações quando os descontos se apresentavam no extrato bancário. Até limite pegava do banco, e no final dava um bolo só, como as bolas de cernambi que fazia, e retirava. Portanto, tudo agora que adquirira provavelmente já não era seu, tampouco o benefício, só os juros que o sufocavam e o espremiam, como as dores que rasgavam seu peito, como se o coração pedisse uma trégua, clemência, em busca de superação. Como passar o resto da vida aprisionado às dívidas? Era só a jovem dizer que ia embora que Antonio lhe estendia a mão, pedia paciência, mergulhava ao fundo do poço e raspava da areia que o cobriria mais tarde, cedia, pedia emprestado aos agiotas da cidade, sempre benevolentes e amigos para todas as ocasiões, a juros altos. Ficou desconsolado e adoentado quando a jovem disse-lhe novamente que partiria. Quis curar a dor com um gole de álcool que misturava com açúcar, e ficou quase morto em casa, salvo pelos amigos mais uma vez, sem os filhos, sem a família, sem esperança, sem amor. Como explicar tudo aquilo?
Quando encontrou a jovem ela disse que só ficaria na casa se ele deixasse o amigo dela ir junto, e também se Antonio a nomeasse procuradora para resolver seus negócios, nada do vizinho. Antonio aceitou porque estava cheio de intenções de amor, e esta era uma sentença. A enfermidade chegou-lhe ao leito. Ninguém se incomodava com isso. Tudo estava vazio na casa, só papeis, talões e faturas novos de cobrança. O pecado reinava, cheiros de álcool e droga poluíam o ar de uma casa que um dia foi edificada para receber o amor. Companhias estranhas aos olhos de Antonio o confundiam com os filhos que ficaram na infância esperando por ele. Mandaram-no para o hospital, como um indigente, um homem cuja identidade perdeu, sem parentes e com endereço certo nas empresas de restrição de crédito e em todo o comércio da cidade, porque os que ficaram sãos sugaram-lhe tudo. Era tarde demais para descobrir que aquilo não passou de farsa para apoderarem-se do pouco que lhe pertencia. Como beneficiário e por morar sozinho, poderia ter economizado e tratado o coração, ter buscado a família e o amor dos seus, o conforto tão esperado. Pediu apenas que o amigo Arthur escrevesse e dissesse que ele foi um bom homem, que trabalhou honestamente, que se embrenhou nas matas em busca de sustento, cortando seringa, quebrando castanhas até a vinda do benefício. Não conheceu as letras, mas muitas palavras de salvação não lhe foram suficientes quando se deixou levar pela ilusão. Preferiu dar seu amor, que era puro para quem não merecia, e um coração sem Deus é vazio, só uma porção de tecido vivo no peito, que, unido ao cérebro e ao sistema nervoso deixa o homem em tal estado, cego ao extremo de tirar a vida do próximo, de morrer por tão pouco.
O ser não humano não é computador, e de tanta carga a memória fica lenta, incomoda, fere, e por vezes percorre caminhos de pedras e de espinhos em busca de uma felicidade que jamais encontrará, porque a felicidade do mundo é patrocinada pelo inimigo, pelos prazeres da carne, expostos na tabela da matéria, e a de Deus, gratuita, encontrada na comunhão, no amor ao próximo, no seio familiar e nas boas obras. Muitos corações param quando homens pensam na eternidade da vida sem Deus. Antonio é um personagem que criei, e que os reais caminham todos os dias no Brasil afora, no nosso Acre, com suas lutas e vidas, indefesos e maltratados, sozinhos ou em família, nos asilos, administrados por terceiros, mal alimentados, enganados, sem ver seu tostão, mesmo percebendo uma renda suficiente para viver com dignidade. Perecem diante de falsas amizades e muitas vezes pelo desprezo que lhes dão. Devemos dar amor e carinho ao próximo, aos nossos chefes de família, aos nossos pais e anciãos, a essa gente que faz a história dos combatentes soldados da borracha, dos aposentados e pensionistas, mas devemos sobretudo pedir a Deus que direcione seus caminhos, para que, com Ele, saibam encontrar a verdadeira salvação, o verdadeiro amor. Embora estejamos lutando contra o pecado, é através do Pai que a ajuda acontece, e não é só material, ganhamos, quando permitimos, o Espírito Santo de companhia, que nos guia, que nos orienta a fazer o bem, que persegue o inimigo e nos fortalece, que nos traz a verdadeira felicidade, o verdadeiro amor, que nos dá salvação pelas veredas do bem. É preciso aceitar o entardecer dos nossos anciãos, a honrar suas lutas.
Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o SENHOR sonda os corações.